Feminicídios em 2025: assassinatos em público revelam controle, defesa da honra e ódio às mulheres, apontam especialistas
27/12/2025
(Foto: Reprodução) Violência contra mulheres: ao menos 30 casos em 5 dias
Tainara Souza Santos, Evelyn de Souza Saraiva, Camila Aparecida Montoro Cruz e tantas outras mulheres foram alvo de violência cometida por ex-companheiros em espaços públicos em 2025.
As formas de ataque foram as mais brutais e cruéis: Tainara morreu e teve as pernas amputadas após ser atropelada e arrastada por um carro, Evelyn foi baleada seis vezes dentro do próprio trabalho e Camila era vítima de violência doméstica e foi atropelada em plena luz do dia.
🔎 O principal local onde os feminicídios ocorreram, em 2024, segue sendo a residência da vítima, que representa 64,3% dos casos, a mesma proporção verificada em 2023. Na sequência, 21,2% dos assassinatos foram cometidos em vias públicas, segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mais recentes.
Ou seja, apesar da maior concentração dentro de casa, a violência de gênero transborda para fora do ambiente doméstico e ocupa ruas, locais de trabalho e outros espaços de convivência social.
Essa escalada de violência contra as mulheres se reflete nos números. Em 2025, a cidade de São Paulo bateu recorde no número de feminicídios desde o início da série histórica da Secretaria da Segurança Pública (SSP), em 2018.
Entre janeiro e outubro deste ano foram 53 casos, ou seja, uma mulher foi assassinada, em média, a cada cinco dias. No mesmo período, o estado de São Paulo registrou 207 mortes.
Para especialistas ouvidas pelo g1, a violência na rua é uma forma de o agressor reafirmar sua masculinidade, demarcar território e expressar o ódio pela figura da mulher — a misoginia.
Manifestantes protestam durante o velório do corpo de Tainara Souza Santos, que morreu em decorrência dos ferimentos sofridos após ser atropelada e arrastada por cerca de 1 km na Zona Norte de São Paulo.
LECO VIANA/THENEWS2/ESTADÃO CONTEÚDO
Término da relação e fator de risco
Dados da pesquisa “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, do FBSP, revelam que o principal autor das violências sofridas pelas mulheres é justamente o cônjuge, o companheiro, o namorado ou o marido (40%). Em seguida, aparecem ex-cônjuges, ex-companheiros ou ex-namorados (26,8%).
A promotora Fabíola Sucasas, da Promotoria de Justiça de Enfrentamento à Violência contra a Mulher no Ministério Público de São Paulo (MP-SP), alerta que o rompimento da relação é um dos momentos mais perigosos para a mulher.
Com o fim da convivência, o agressor passa a procurar a vítima em outros espaços ligados à sua rotina, como a escola do filho, o local de trabalho ou até ambientes de lazer.
O término do relacionamento, segundo a promotora, desperta a rejeição no homem, acompanhada de raiva, ódio e menosprezo pela figura feminina. Como forma de demarcar o território e defender a "honra ferida" no imaginário masculino, a violência é praticada das maneiras mais cruéis.
“Embora a crueldade já seja uma marca típica dos crimes de feminicídio, é a rejeição àquele homem que lhe impõe uma raiva, um ódio, a ponto de ele demarcar esse território — seja através de repetidos golpes, de exibir para a sociedade a violência como se fosse praticamente uma forma de troféu. Uma forma de ele dizer: ‘Aqui quem manda sou eu, se você não for minha, você não será de mais ninguém’”, explica Sucasas.
A delegada Eugênia Villa, criadora da primeira delegacia especializada em feminicídios do Brasil, também reforça que o feminicídio é um crime de poder que "visa a manutenção da supremacia masculina sobre as mulheres". Para isso, o agressor persegue e mata a vítima mesmo em espaços públicos.
Se nós, mulheres, estamos frequentando com maior frequência espaços públicos, então os feminicídios poderão migrar para esses espaços. O recado [dos homens] é simples: nosso lugar é dentro de casa, sob o controle de um patriarca que necessita revigorar seu poder. Caso nos aventuremos em espaços públicos, lá estará nosso algoz em busca do poder 'perdido'. O feminicida não é guiado pelo sentimento de impunidade, mas pelo da perda do poder da masculinidade.
Registros e falta de intimidação
Mulher é baleada pelo ex-marido dentro do trabalho
Em tempos de extrema vigilância, com celulares e câmeras de segurança espalhados pela cidade, os registros audiovisuais podem ajudar na produção de provas contra os agressores. No entanto, especialistas apontam que esses mecanismos não são suficientes para intimidar os agressores.
No caso de Evelyn de Souza Saraiva, o ex-marido a seguiu até o trabalho, em uma pastelaria na Zona Norte de São Paulo, sacou duas armas e atirou seis vezes contra a jovem. Toda a ação foi registrada por uma câmera de segurança (veja acima).
Segundo Eugênia Villa, no momento do assassinato, o agressor não se preocupa em ser identificado. O que o move é o poder de destruição contra a mulher — uma tentativa de reivindicar a masculinidade que ele acredita ter sido afrontada.
Overkill e transferência de culpa
Casos de feminicídio costumam estar associados ao overkill: quando o agressor mata muitas vezes simbolicamente a vítima, usando violência extrema para afirmar poder, controle e ódio. O conceito se manifesta em situações com múltiplos golpes, tiros repetidos, mutilações ou uso de diferentes meios de agressão.
Esse padrão aparece, por exemplo, no caso de Tainara Souza Santos, que teve as pernas amputadas após ser atropelada e arrastada por cerca de 1 km até a Marginal Tietê pelo ex-ficante. Ela chegou a ficar 25 dias internada no hospital, mas morreu na véspera do Natal.
“A honra dele vale mais do que qualquer coisa. A gente viu no caso do Doca Street [assassino de Ângela Diniz]. Ele alegava que a sua honra valia mais que a própria vida da vítima, e essa roupagem permanece no imaginário popular. Ele permaneceu até a morte dizendo que [a culpa] foi da Ângela, que era um amor louco”, diz a promotora.
Tainara Souza Santos foi atropelada e arrastada de carro pelo ex e teve as pernas amputadas.
Arquivo pessoal
Para a promotora, “os Doca Streets continuam vivos”, já que o comportamento dos agressores pouco mudou ao longo das décadas. Em geral, eles não assumem a responsabilidade pelos crimes e transferem a culpa para as vítimas.
Desafios no combate à violência
O que é feminicídio?
A violência contra a mulher é uma questão complexa, estrutural e profundamente ligada a uma sociedade patriarcal e machista, que se manifesta tanto nas relações privadas quanto nas falhas do poder público.
Segundo a promotora, os pilares do combate à violência passam pelo foco no agressor, pela proteção efetiva às mulheres, pela educação de longo prazo e pelo orçamento público, sem os quais qualquer política tende a falhar.
"O freio inibidor para um potencial feminicida é a sua imediata prisão conjugada com a inserção em programas que o auxiliem a refletir sobre masculinidades e relações de poder para transformar a disputa em ética do cuidado e solidariedade", afirma Eugênia Villa.
Especialistas apontam que o papel do Estado é central nesse cenário, porém, vem mostrando muitas falhas, como a falta de políticas públicas, a ausência de delegacias de defesa da mulher em todos os territórios, falta de monitoramento das medidas protetivas e de implementação de grupos reflexivos para homens.
Pesquisadores alertam também para os limites do direito penal: a punição, sozinha, não é suficiente para mudar comportamentos nem impedir a reincidência. O enfrentamento exige educação e prevenção como eixos centrais, com a abordagem de gênero desde a escola.
Como pedir ajuda?
Violência contra mulher: como pedir ajuda
Se uma mulher for vítima de violência, é fundamental saber que ela não está sozinha e que existem canais oficiais e gratuitos para pedir ajuda, orientação e proteção. O atendimento pode ser feito de forma sigilosa e funciona mesmo que a vítima ainda não queira registrar boletim de ocorrência. Veja abaixo onde buscar apoio:
📞 Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher
Funciona 24 horas, todos os dias. Oferece orientação, acolhimento, registro de denúncias e encaminhamento para a rede de proteção mais próxima.
🚨 Ligue 190 – Polícia Militar
Deve ser acionado em situações de emergência ou quando a violência estiver acontecendo naquele momento.
🏛️ Delegacia da Mulher (DDM)
Atendimento especializado para registro de boletim de ocorrência e solicitação de medidas protetivas. Onde não houver DDM, qualquer delegacia é obrigada a atender denúncias de violência doméstica.
💻 Delegacia Eletrônica (SP e outros estados)
Permite registrar ocorrência online em casos de ameaça, lesão corporal e descumprimento de medida protetiva.
⚖️ Defensoria Pública
Oferece assistência jurídica gratuita, inclusive para ações de divórcio, guarda de filhos e pedidos de proteção.
🤝 Centros de Referência da Mulher (CRAM)
Oferecem acolhimento psicológico, social e orientação jurídica, com acompanhamento contínuo.